domingo, 16 de junho de 2019


“Vou aprender a ler, para ensinar meus camaradas!”

Para alguns, obter um título dentro de uma instituição pública de ensino, pode ser a coisa mais banal; para mim não! Sou o nono filho de uma família de treze pessoas, pois minha avó morava conosco. Por falta de casa própria, durante muitos anos, mudávamos com constância. Meu pai policial, e taxista. Minha mãe, do lar. Meus irmãos, os três primeiros mais velhos, começaram a trabalhar antes dos treze anos para ajudar em casa e mesmo assim passamos muitas necessidades. Lembro uma vez, que não tinha nada para se comer em casa e meu irmão, trabalhava de trocador, e naquela época os trocadores andavam com dinheiro das passagens, ele então chegou em casa, com muito dinheiro, nós sem nada para comer e, mesmo assim, em momento algum foi opção retirar de um dinheiro que não era nosso. Assim, com exemplos, fui aprendendo sobre dignidade, de ética, de honestidade. Em 1981 logo quando conseguimos ter uma casa nossa, vem o “dilúvio”, enfraquece o barranco, enche o rio e na sequência  nossa casa é levada. Morávamos numa Vila ali no Esplanada, bem em frente ao presídio feminino, exatamente onde está pavimentada a Avenida dos Andradas hoje. Lembro que saia na porta da cozinha e via o rio Arruda, ele fazia parte do nosso quintal: o rio, a areia branca, o quintal. Todo período chuvoso trazia uma tensão. Mas era ali que podíamos fazer morada. E num desses períodos mais bravo, o barranco cedeu e nossa casa foi levada com ele. Estávamos lá dentro, quando ouvimos o barulho, minha mãe, meu pai, rapidamente foi nos tirando de dentro da casa, meus irmãos mais velhos iam correndo com os mais novos e eu era um deles. Minha mãe ficou presa dentro da casa na tentativa de garantir que suas crias estivessem seguras, meu pai, vizinhos, com muito esforço, conseguiram retira-la, logo após, a nossa casa e tantas outras foram levadas igual casa de brinquedo pelo barranco rio adentro. A prefeitura, o Estado, não sei qual, indenizou uma parcela da população, e meu pai foi contemplado. Em 82/83 mudamos para o Conjunto Cristina, em Santa Luzia, depois que nossa casa foi levada pelo rio. Até hoje minha mãe e alguns irmãos e irmãs ainda moram no bairro, meu pai já faleceu. Treze pessoas dentro de um apartamento de três quartos. Fomos amontoando: um quarto para meus pais, um para minhas duas irmãs e minha avó, outro para os oito homens. Ao lado do nosso prédio, haviam mais nove, num total de 96 famílias que moravam perto do nosso apartamento. O Conjunto tem muito mais casas e apartamentos, não sei quantas mil famílias moram lá. Do pedaço perto do nosso prédio e apartamento, éramos a família mais pobre, quase a maior também, e, mesmo assim, era a casa que mais as crianças e alguns adultos queriam frequentar. Lembro, que comíamos fubá suado,  não tinha dinheiro para pão ou leite ou biscoito ou café, então o fubá suado, era que completava as refeições diárias, e toda tarde, quase todos os meninos e meninas da redondeza iam comer conosco. Ficava pensando, eles tem biscoito, leite, pão doce com salame, e mesmo assim, só querem comer do fubá suado ou o bolo de nada aqui de casa. Bolo de nada é porque so tinha farinha de trigo, fermento, óleo e agua. Sentava aquele tanto de meninos e meninas, para comer e vê a sessão da tarde (geralmente o filme A Lagoa Azul) na nossa TV preta e branca de tubo da Advance. Alguns até carro tinham e todos tinham tvs coloridas, menos nós.  E mesmo com todas as dificuldades, fomos crescendo e construindo nossos caminhos. Eu um menino, preto, pobre, da periferia, a estimativa, diante de uma sociedade racista, era que eu viveria apenas até os 15 anos, e se tivesse sorte, chegaria aos 18. anos. Contrariei as estatísticas. O encontro com a arte, com a escola, as organizações estudantis e partidárias, vão me dando outros norte. Crio novas possibilidades de vôos. Me reconheço enquanto negro, dou conta da minha homossexualidade, então um mundo diferente se abre. Mesmo com toda a hostilidade voltada para os “diferentes” como eu, sobrevivi e continuo construindo de forma coletiva.  E na defesa da minha dissertação essa construção ficou mais nítida. Estavam presente, além de familiares, amigos, artistas e autoridades, dentre elas, ex-ministra, ex-secretária de estado, vice-reitor, deputada estadual, presidenta do psol municipal, assessoras parlamentares, militantes históricos das artes, do movimento  negro, professores universitários, de ensino médio, fundamental, infantil e de arte, estudantes, curadores de festival, idealizadores de prêmios. Pessoas que fizeram questão de colocar em sua agenda essa defesa, o que me faz acreditar a relevância dela para a arte negra e para a cidade. Então sigo aprendendo a ler, para sempre, sempre, ensinar meus camaradas. A minha família que me deu base, meus agradecimentos sinceros! Os que estiveram comigo nesse dia e em tantos outros, meus sinceros agradecimentos! Aos que enviaram energias positivas, meus sinceros agradecimentos! Aos que fazem parte da minha caminhada hoje e sempre, meus sinceros agradecimentos! A banca examinadora, e minha orientadora, meus sinceros agradecimentos!


belo horizonte, 08 de junho de 2019.
evandro nunes.
mestre em educação

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Foi lindo o ritual de passagem!
    Feliz por ver você ocupando espaços que, nos foram negados anteriormente! avooooe Kenga! avoooe!

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