terça-feira, 21 de julho de 2009

LER O MUNDO COM OLHOS NEGROS

Há várias formas de se ler mundo. Aqui sugiro lê-lo com nossos olhos negros. E para que isso aconteça, é necessário, deixarmos revelar toda nossa bagagem de vida pessoal e artística. É preciso nos revelar, entender nossos ritos, perceber nossas limitações, compreender nossa fala e o lugar de onde ela vem admirar nossas rotações corpóreas ao dançar, abrirmo-nos para a teatralidade existente em cada um, em cada história que contamos, que vivemos, que representamos, que somos.
Edison Carneiro, no seu livro “Antologia do Negro Brasileiro”, nos dá um panorama geral da contribuição da população negra para a sociedade brasileira. Segundo CARNEIRO,

A presença inconfundível do negro, com efeito, invade todos os setores da nossa vida social. O homem negro aumentou o quadro religioso da nacionalidade, incorporando ao inconsciente coletivo figuras legitimamente africana como os deuses Xangô e Ogum, as ninfas Yemanjá e Nanam, os espíritos irrequietos como Exu. O negro adoçou e tornou menos duro, mais dúctil e maleável o português falado no Brasil. Trouxe para a culinária nacional pratos de agradabilíssimo sabor. O negro - mais exatamente o mulato, o mulato de Manuel de Antônio de Almeida e Lima Barreto - deu a nota dolente que predomina nos lundus e nas valsas do século XIX. O negro e o mulato – os homens abandonados dos morros, favelas, dos bairros insalubres da cidade – exprimiram o seu sofrimento e a sua desesperança, mas também a sua vontade de viver, na batucada, no maxixe, no choro e no samba - samba-choro, no samba-canção, no samba de breque, no samba batucada - que hoje são patrimônio comum dos brasileiros. Enfim, o negro contribuiu para o progresso da nação, como um elemento de união, de trabalho, de alegria. ( 2005, p. 09 e 10)

Dentro do cenário teatral, o TEATRO EXPERIMENTAL DO NEGRO (TEN) em meados dos anos 40, proporciona a vários negros/as comuns experimentarem “o estar em cena”, que significou muito mais do que ser o foco da atenção, e sim poder ser um ser histórico com passado, presente e futuro. Abdias do Nascimento, além desses trabalhos sociais, nos dá indícios das raízes da dramática negra-brasileira. Para ele

As raízes do teatro negro-brasileiro atravessam o Atlântico e mergulham nas profundidades da cultura africana. Desde suas primeiras manifestações coletivas, o africano esteve essencialmente vinculado ao teatro. As danças cultuais da áfrica Negra encontram-se na origem dos ritos, e já sabemos que do culto aos Deuses e aos Antepassados passou-se à reprodução das ações humanas e dos animais à estilização existencial... o rito provém de um jogo. Manifesta-se como um instinto no homem: a vontade de representar. E representar seu papel seria a origem de toda a Civilização. O homem é ator; o jogo é a representação da Tragédia que ele vive. A esse instinto ou necessidade vital, o africano subordina todos os aspectos de sua existência pessoal e comunitária. As grandes festas religiosas – forma da vitalidade negra – com sua liturgia consubstanciada à dança, canto e pantomimas, são as primeiras e autênticas cenas teatrais africana... que há muito é negada pelos incapazes de compreender o drama que não apresente o Canon tradicional do Ocidente. (NASCIMENTO, 1961, p. 10)

O TEN leu com seus olhos negros o mundo e a sociedade brasileira, num momento em que todos os outros olhos nos repudiavam e diziam sermos um entrave ao progresso nacional. E mesmo, na busca de uma arte autenticamente brasileira, a nossa não fazia parte. Sabiamente Abdias esclarece “incapazes de compreender” a nossa arte.
Para finalizar esse primeiro momento cito MARTINS (2002, p.89) que diz que “o corpo é um portal que, simultaneamente, inscreve e interpreta, significa e é significado, sendo projetado como continente e conteúdo, local, ambiente e veículo da memória”. E a memória só existe para quem se permitiu viver, e quem vive lê com seus olhos, aqui, negros.


Evandro Nunes
Ator, Diretor em Teatro, Performe, Contador de História, Educador Social, Pedagogo, Arte Educador.


REFERÊNCIAS

CARNEIRO, Edison. Antologia do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro, RJ. Agir. 2005.

MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, Graciela & ARBEX, Márcia (org) Performance, exílio, fronteira: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte, MG. Fale, 2002.

NASCIMENTO, Abdias. Drama para Negros e prólogos para Brancos. Rio de Janeiro, RJ. 1961.