quarta-feira, 9 de junho de 2010

Janela da Alma - Evandro Nunes

“Bem que eu me lembro da gente sentado ali... olhando ao redor... pra nunca mais...”

É eu me lembro, e hoje sentado aqui no alto do Alto vendo todas essas casas que se erguem com uma velocidade estonteante - gente que chega, gente que vai, becos que formam verdeiros labirintos -, me vêm então um gosto nostálgico, pois lembro de quando aqui era chamado de Terra Vermelha / Flamengo.
Umas poucas casas, um bica de onde se tirava a água de fazer comida, para beber, e, também, era onde se lavava as roupas. Não tinha luz. Tudo iluminado por velas ou lamparinas. De longe parecia um amontoado de vagalume que ora acendiam ou apagavam, mas sempre deixando uma meia sombra.
Mesmo sem ônibus, sem escolas, postos de saúde, sem asfalto, água encanada ou luz elétrica, todos os dias um barraco era erguido, e logo ocupado por mais uma família oriundas de outros estados ou do interior de Minas, mas todos com um único sonho: uma vida melhor.

“ponta de areia, ponto final, da Bahia a Minas estrada natural...”

O trem vinha passando, e dispersava a roda de crianças brincando de ciranda. Hoje, não são as crianças que puxam a roda, são outras as Meninas.
Cada dia uma nova família e mais um casa se erguia. Logo surgiu o campinho de futebol, vários bares e mercearias. Mais uma casa, mais outra e mais outra são erguidas. Agora, ao domingos, no campinho dava até pra fazer campeonato. Os bares enchiam e fogos pipocavam no céu assustando a criançada e os cachorros. Mesmo as crianças que saiam escondidas, ou fugidas, pra comprar sal e sabão, quando viam os fogos corriam, outras, tal qual a menina sorriso, ficavam estagnadas com a cabeça virada para o céu com um brilho indescritível nos olhos e um sorriso de Monalisa estampado no rosto.
Mais uma casa, outro beco, outra família e mais uma luta. Quando chovia, o barro vermelho tomava conta. Quando o sol aparecia e ficava dias a fio, a poeira levantava. Se andava “...pró,pró, pró...” os pés afundavam na terra e mesmo quando parado só pensando, a velocidade do pensamento levantava poeira, e essa causava alergia nos meninos, em toda gente. E como tratar? Hospital não tinha, posto de saúde nem se ouvia falar. No tempo da escola saiam os meninos descendo o morro, com os pés todos com resquícios da poeira, seguindo pro Pompéia, Saudade, Vera Cruz, Santa Clara, ás vezes, até o Horto, Boa Vista, São Geraldo. Surgem casas, crescem as famílias, e com elas as dificuldades e as insatisfações. E eis que surge (ressurge) as lideranças comunitárias e as associações, com seus abaixo-assinados, manifestações frente a Prefeitura, protestos e um povo politizado ( ou se politizando), organizado. Aos poucos as lutas foram sendo vencidas: já começa a ter água encanada, saneamento básico, luz. Dessa faziam “gatos”, gambiarras, mas os ferros de passar roupa não podiam ser ligados ao mesmo tempo. Aí ecoava pelas janelas as vozes:
- Isabel, to passando roupa!
- Tudo bem Jorgina, passo amanhã.
- Mercês liga o ferro não, to passando!
- Desculpe Antônia!
A escola, improvisada, parecia feita de palha:
Chovia, caia, era levantada.
Ventava, caia, era levantada.
Chovia, ventava, caia era levantada.
Caia, chovia, levantada, ventava.
e assim foi por anos.
O asfalto veio, e com ele o ônibus, que trouxe o posto de saúde e todas as outras melhorias. Mais nada veio de graça, foi preciso garra, luta, uma força organizada gerando um movimento social.
Já não somos pé vermelho - eles já conseguem ficar limpos-, mas outras insatisfações nos cercam, e com elas vêm os vícios, que geram a violência, que trazem o medo e a morte. Ano a ano, dia a dia, hora a hora um jovem morre vítima de violência, seja pelas mãos dos marginais ou da policia.
Mas ainda há boniteza no lugar! Olha lá! Esse é meu povo, que não desisti nunca. Olha a roda das Meninas de Sinhá e suas netas. O Blits e a rapaziada do Rap também tão lá. Caca, já pegou o violão e veio cantar. Vem meu povo, Vem pra roda rodar!
Vem CIAME, CRAS, Associações, Centro Cultural, Casa do Brincar! Vem Marilda com sua dança afro, Adriano com sua poesia,
Agente Jovem com seu protagonismo, NUC com seu multiculturalismo, Cida com sua militância, Welligton com suas crianças. Vem! Vem Meire, como um pássaro nas pontas dos dedos fincando raízes, juntar-se a roda. Dancem a ciranda, é só assim - unidos e fortes - que as insatisfações serão amenizadas! Vem meu povo, juntem-se a roda, venham.... ops! Abram a roda pró caminhão passar: mais uma família.


Esse texto é dedicado a todas as pessoas, moradoras do Alto Vera Cruz, que com suas histórias, possibilitou essa escrita. Em especial a Dona Jorgina, Dona Antônia, Dona Mercês, Dona Isabel, todas do grupo Meninas de Sinhá, e Rosemeire Pacheco, pelos depoimentos saborosos.